O presidente do BNDES, Luciano Coutinho, informa que chegou a hora de diminuir o apoio do banco a empresas que têm acesso fácil ao mercado de capitais. A ideia é manter o crédito subsidiado, amparado na Taxa de Juros de Longo Prazo (TJLP), hoje em 5% ao ano, apenas para os investimentos em infraestrutura, projetos de inovação tecnológica e empresas intensivas em capital.
Coutinho quer fazer essa transição de forma calculada, sem prejudicar os gastos das empresas com Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF), indicador dos gastos com máquinas, equipamentos e construção civil. Nesta entrevista ao Valor PRO , serviço de notícias em tempo real do Valor , o presidente do BNDES contou como pretende diminuir a dependência das empresas por recursos do banco e deste do dinheiro do Tesouro.
Valor: O que mudará na forma de atuação do BNDES, já que o governo decidiu reduzir os aportes ao banco?
Luciano Coutinho: Nossa proposta é de redução gradual da necessidade de funding complementar ao BNDES por parte do Tesouro, no limite que não afete negativamente o investimento, de forma a sincronizar esse movimento com uma crescente participação de fontes privadas, especialmente do mercado de capitais, para não prejudicar a Formação Bruta de Capital Fixo (FBCF). Essa programação inclui também moderar substancialmente a nossa participação em crédito para capital de giro e, eventualmente, reduzir a cobertura em algumas linhas não essenciais para investimentos.
Valor: Por exemplo?
Coutinho: Algumas áreas que não são intensivas em capital e que podem ter uma alternativa de financiamento em mercado mais fácil. Elas podem estar relacionadas a comércio exterior e a serviços. Não estou dizendo que vamos abandoná-las à própria sorte. Estou dizendo que podemos modular isso de maneira mais criteriosa, de forma a não prejudicar os investimentos, inclusive, dessas áreas. Para quem tem mais facilidade de acesso a mercado, reduziremos de tal maneira que, no próximo ano e nos anos subsequentes, o BNDES estará preparado para uma redução gradual de suas necessidades de funding com origem no Tesouro. Isso inclui que o banco faça um maior esforço de captação no mercado e que, portanto, repasse nas suas linhas um percentual maior de recursos a custo de mercado.
Valor: Como isso seria feito?
Coutinho: Posso reduzir um pouco a cobertura em TJLP e oferecer um complemento a custo de mercado.
Valor: A mudança valerá para todos os setores?
Coutinho: Dado que teremos uma demanda crescente por investimentos em infraestrutura, que têm uma característica relevante – o longo prazo de maturidade requerendo empréstimos de longa duração, com prazos superiores a 15 anos e média de 25 -, haverá pressão adicional por recursos, uma vez que isso se soma aos grandes financiamentos ao setor de energia, que já constitui uma carteira grande e sólida. Como financiar esse ciclo? Nossa resposta tem sido estimular o mercado de debêntures de longo prazo, criando condições favoráveis à sua emissão. Vários instrumentos e estímulos estão sendo implementados.
Valor: Quais?
Coutinho : Um deles é uma metodologia de amortização mais favorável do crédito quando existir emissão associada de debêntures de longo prazo. Estamos buscando associar o nosso crédito de longo prazo a um projeto de infraestrutura à emissão conjunta de uma debênture. Estamos dizendo aos investidores: ‘Emita uma debênture e você poderá contar, primeiro, com o compartilhamento das garantias com o BNDES’.
Valor: Como isso vai funcionar?
Coutinho: O BNDES está oferecendo um crédito de longo prazo que vai ser a grande âncora do projeto. Depois, dizemos: ‘Lance a debênture e a mesma garantia que temos para o crédito nós compartilharemos com a debênture’. De tal maneira que, se houver um ‘default’ (calote) na debênture, você se torna solidário nas suas garantias na emissão de debênture. Num ‘project finance’, o crédito do BNDES vai estar garantido por um conjunto de garantias. A ideia é que a debênture possa estar no mesmo pé de igualdade que o crédito do BNDES. Isso é o que chamamos de compartilhamento.
Valor: Em “project finance”, o investimento já não está garantido pelas receitas do empreendimento?
Coutinho : Normalmente, o ‘project finance’ se constitui como um conjunto de garantias porque, nessa modalidade de financiamento, a empresa cria uma SPE [Sociedade de Propósito Específico] segregada dos seus acionistas e é dona do empreendimento. O fluxo de resultados da SPE é que funciona como garantia. O que queremos é que os proprietários da SPE corram um risco limitado nesse processo para não comprometer os seus balanços. Como não existirá uma garantia do balanço dos acionistas, é preciso gerar outro conjunto de garantias.
“Queremos associar nosso crédito de longo prazo a um projeto de infraestrutura à emissão de uma debênture.”
Valor: Qual seria esse conjunto?
Coutinho : É uma composição de fontes de garantias, dentre elas, seguros privados. Estamos seguindo um pouco o modelo europeu, em que um pedaço das garantias vem dos seguros privados, que, em geral, cobrem sinistros mais previsíveis e riscos gerenciáveis mais ou menos ao alcance do construtor. No limite, existe o chamado contrato ‘turn-key’, associado a um seguro de desempenho. Uma segunda responsabilidade tem a ver com o poder concedente – a União representada pelo ministério ou por uma agência reguladora.
Valor: De que forma o governo entra nesse processo?]
Coutinho: É muito comum, quando há um fator imprevisto não gerenciável que afeta um projeto, o regulador reequilibra o projeto, seja ampliando o prazo, seja reduzindo exigências de investimento ou dilatando essas exigências no tempo. E, finalmente, se acontecer um fato de força maior, inteiramente imprevisível, na última instância a Agência Brasileira de Garantia poderia garantir. A ideia, portanto, é constituir uma cesta de seguro e garantias de tal maneira a viabilizar um volume grande de operações de ‘project finance’, de forma factível.
Valor: Os bancos privados vão participar dessas operações?
Coutinho: Normalmente, o ‘projetc finance’, nos países desenvolvidos, do lado dos financiadores é compartilhado por um sindicato de bancos. Temos, portanto, interesse em que os bancos atuem em conjunto conosco. Embora o funding possa ser do BNDES, os bancos podem tomá-lo, de tal maneira a compartilhar também o risco pelo lado dos financiadores. O momento ideal para a emissão das debêntures é aquele em que o projeto está mais avançado e, portanto, quando os riscos mais inquietantes do período de construção já tiverem sido ultrapassados. Estamos buscando também outras alternativas de debêntures que possam estar lastreadas em ativos já existentes dos empreendedores. Uma possibilidade é que esses ativos possam lastrear parte da garantia das debêntures, embora os recursos sirvam para financiar novos investimentos. Além disso, o BNDES poderá apoiar a emissão da debênture, se necessário.
Valor: Como?
Coutinho: Tomando uma fração da emissão. Tem que ser uma fração pequena para sinalizar ao mercado que o BNDES pode tomar cotas subordinadas, que são aquelas que têm as primeiras perdas. É uma forma de dizer ao mercado: ‘Confie nesse projeto, estamos assumindo as cotas de maior risco’. Em terceiro lugar, estamos trabalhando para aumentar a liquidez do mercado secundário.
Valor: Por que esse mercado de debêntures ainda não deslanchou?
Coutinho: Porque os projetos de logística estão amadurecendo somente agora. Ao longo dos últimos meses, as iniciativas de leilões em energia e em logística começaram a tomar corpo. Daqui para o fim do ano, teremos um volume interessante de emissões e esperamos que isso aumente substancialmente, concretizando um processo de compartilhamento e de ‘crowd-in’ [de atração de investidores]. Esse conjunto de iniciativas é que vai nos permitir moderar o volume de desembolsos do BNDES em 2014 e, esperamos, daí por diante, principalmente dos créditos que usam TJLP. Obviamente, quando o ciclo de alta da taxa Selic, necessário para controlar a inflação, chegar ao seu fim, a nossa expectativa é que esse processo se acelere.
Valor: Que setores continuarão recebendo crédito mais barato?
Coutinho: A alocação de recursos em TJLP, além do prazo dos financiamentos, deve ser priorizada para a necessidade de apoiar o ciclo de investimento em infraestrutura; os investimentos industriais, especialmente, os intensivos em capitais, que demandam mais prazo; e a inovação tecnológica. Essas são as três grandes orientações. Em todos os outros setores, há a necessidade também de financiar a aquisição de máquinas e equipamentos, que é a formação bruta de capital fixo. Nas outras áreas, poderemos modular a oferta de forma que ela possa ser complementada pelo mercado. Se o empreendedor quiser, poderemos oferecer um pedaço do crédito a custo de mercado. Vai ficar mais caro em relação ao crédito para infraestrutura, mas não mais caro em relação ao mercado.
Valor: A dívida pública bruta saltou, nos últimos três anos, de 53% para quase 60% do PIB. Uma das razões, segundo analistas, foram os aportes do Tesouro ao BNDES. O senhor não vê isso com preocupação?
Coutinho: Tem uma parte da dívida bruta de controle de liquidez, pela qual o BC dispõe de um certo volume de papéis que não foi utilizado. Está esterilizado. Temos que considerar um conjunto de causas que explica o aumento da dívida bruta.
“Se pegarmos as 500 maiores empresas, 406 foram apoiadas pelo banco. O BNDES é aberto a todo o sistema empresarial.”
Valor: Quais?
Coutinho: A aquisição de reservas cambiais teve um papel importante de 2004 em diante. Mais fortemente em 2009 e em 2010 ocorreram os dois principais empréstimos ao BNDES, logo depois da crise. Dos R$ 300 bilhões que o Tesouro emprestou ao banco, praticamente R$ 190 bilhões foram nos dois primeiros anos. Então, o impacto do BNDES em 2011, 2012 e 2013 é pequeno e declinante. Mais recentemente, as operações de política monetária de curto prazo tiveram peso importante na dívida bruta.
Valor: Por quê?
Coutinho: À medida que o BC reduziu os compulsórios, e ele precisa enxugar liquidez, há um volume de títulos que está lastreando operações compromissadas. Se excluirmos as compromissadas, a dívida está estável. Há uma crítica excessiva sobre os repasses ao BNDES.
Valor: Em que sentido?
Coutinho: Toma-se o valor dos aportes acumulados do Tesouro e se esquece que o BNDES emprestou cerca de R$ 840 bilhões nos últimos anos [de 2008 até setembro de 2013]. Isso teve impacto extremamente relevante na sustentação dos investimentos. Qualitativamente, é muito diferente quando o Tesouro emite dívida para comprar reservas.
Valor: Por quê?
Coutinho: Porque, quando o Tesouro faz isso, ele compra um ativo líquido. Em geral, boa parte disso é em títulos do tesouro americano. Quando o Tesouro emite dívida para apoiar investimento produtivo, o Tesouro ajuda a dar funding ao BNDES, que o converte em ativos produtivos. Isso gera um impacto positivo sobre a renda e o emprego da economia. Esse impacto tem dois momentos: durante a execução do investimento e, uma vez constituído o ativo, gera um fluxo futuro de renda, impostos, empregos etc. Podemos mostrar que esse impacto é mais benéfico, em termos de retorno, do que o juro obtido na aplicação das reservas. Até porque hoje esse juro é muito pequeno por causa das políticas monetárias dos países desenvolvidos. O apoio do Tesouro é ruim quando ele emite dívida para financiar gasto corrente. Quando financia investimento, cria riqueza, capital. Quando compra reserva cambial, adquire um papel que é importante como colchão de proteção, mas cujo retorno é pequeno quando comparado ao retorno produtivo. No fundo, o problema é que o Brasil não dispõe de uma base de financiamento de longo prazo.
Valor: Como o senhor explica o fato de a taxa de investimento, medida pela FBCF, ter caído nos últimos três anos, apesar do aumento de desembolsos do BNDES?
Coutinho: Em 2008, vimos a ascensão dos investimentos, que estavam próximos de 20% do PIB, quando, então, por causa da crise mundial, caíram para 16% do PIB. Houve uma forte recuperação em 2010, nitidamente associada ao BNDES porque naquele momento não havia crédito privado. Depois, veio uma certa inércia com o crescimento mais modesto da economia em 2011 e uma ligeira queda em 2012. Da segunda metade de 2011 à primeira metade de 2012, houve uma desaceleração que coincide com um período dramático da economia mundial, que foi o euro à beira da ruptura. Ainda assim, a queda do investimento em 2012 é pequena quando comparada a quedas anteriores. Agora, está havendo uma forte recuperação em 2013. No primeiro semestre, a FBCF cresceu 15%. Neste ano, vamos fechar com crescimento de 7,5%, mais que o PIB e chegando perto de 19% do PIB. Eu faria uma pergunta contrafactual.
Valor: Qual?
Coutinho: O que teria acontecido se, em vez de ter desembolsado R$ 840 bilhões desde 2008, o BNDES tivesse emprestado R$ 500 bilhões? Ora, o investimento teria caído muito mais.
Valor: Como o senhor responde ao fato de o BNDES ter colocado dinheiro em vários empreendimentos que não deram certo, como as empresas de Eike Batista?
Coutinho: O BNDES emprestou R$ 840 bilhões nesse período, mas também acumulou R$ 45 bilhões de lucro, com o nível de inadimplência mais baixo de todo o sistema financeiro. Desse lucro, cerca de R$ 20 bilhões foram originados na BNDESPar. É uma empresa que, de maneira direta e indireta, apoiou mais de 300 empresas.
Valor: O BNDES escolhe setores e empresas?
Coutinho: Se eu olhar o apoio da BNDESPar e o creditício, das 100 maiores empresas brasileiras, 91 receberam apoio do BNDES. Se pegarmos as 500 maiores, 406 foram apoiadas pelo banco ou 81,2%. Se olharmos as 1.000 maiores, de acordo com dados do Valor 1000 , o BNDES apoiou 783, quase 80%. Isso mostra que o banco é isento, técnico e aberto a todo o sistema empresarial brasileiro. No período mencionado, o BNDES também realizou mais de três milhões de operações de crédito para micro, pequenas e médias empresas (MPEs) por meio dos cartões e do Finame. As MPEs representavam 20% do desembolso total. Hoje, em torno de 37%.
Valor: Mas como o senhor explica os investimentos que não resultaram em bons negócios?
Coutinho: A crítica se concentra em um caso – o grupo EBX. O apoio a esse grupo nada tem a ver com a política chamada indevidamente de “campeões nacionais”. O EBX se notabilizou por dois tipos de empreendimento: infraestrutura e em energia (incluindo petróleo) e mineração. Os investimentos sólidos foram apoiados pelo sistema bancário e o BNDES. Foram estruturados e tinham valor intrínseco suficiente para atrair novos investidores, como ocorreu.
Valor: O BNDES não perdeu dinheiro?
Coutinho: Os novos investidores capitalizarão e levarão os projetos adiante, permitindo a migração dos créditos dos empreendimentos. O fulcro da supervalorização do grupo veio da supervalorização das ações da OGX, a empresa de petróleo. Se você atentar, a OGX foi resultado de um fenômeno de mercado. Não há crédito bancário nosso na OGX e o que há de outros bancos é irrelevante. O banco não perderá um centavo com a reestruturação do grupo. Todo o nosso crédito já foi equacionado.
Valor: Como?
Coutinho: Aprovamos R$ 10 bilhões e liberamos R$ 6 bilhões. O grosso dos R$ 6 bilhões foi para a MPX, que é a empresa de energia e foi comprada pelo grupo alemão E.ON, que mudou o nome da empresa para Eneva. Outro empréstimo, dentro dos R$ 6 bilhões, foi para a MMX, que fez um porto, que está quase pronto, e foi comprada pelo Mubadala [fundo soberano de Abu-Dhabi] e a Trafigura [trading holandesa]. A LLX foi comprada por um fundo americano [EIG]. Só restou uma dívida de R$ 500 milhões da OSX, o estaleiro, com o BNDES. Mas essa dívida tem fiança bancária e o banco envolvido na operação já nos garantiu que, se houver ‘default’, honrará a fiança.
Fonte: Valor Online